domingo, 1 de abril de 2007

Gilberto Gil, uma entrevista inesquecível

Para evitar o desastre de antes, não toquei mais no gravador. (Essas máquinas giram sozinhas muito bem.) Então pude ver e ouvir a pessoa do artista. (Gilberto) Gil, quando fala, compõe. Ele compõe enquanto fala, ele é músico à procura da letra, e isso fica mais claro quando reitera palavras, expressões, na busca. Refrão e degrau para o movimento seguinte.
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Por Urariano Mota, no Direto da Redação
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Certo, dirão, isso é comum a toda e qualquer pessoa. Sim, mas observem esse trecho da entrevista: "Pedir pra fazer outro sucesso, depois outro sucesso, depois outro sucesso, o mesmo sucesso outra vez", para concluir, "eu não quero". Isso escrito não permite ouvir as modulações e melodia que ele imprime na voz. O ritmo, enfim.
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Quando ele se referiu a Paulo Francis, houve um trecho em que deu uma entonação ao adjetivo "inaceitáveis", que procurei dar uma pálida idéia com um ponto de exclamação seguido de reticências. Ainda assim, se torna inaudível, na escrita. Direi então que o adjetivo "inaceitáveis" veio como uma ênfase, um trecho de um coco cantado por Jackson do Pandeiro. Percebem? Nele houve uma divisão silábica, que além da interpretação já é música. INACEI-táveis!...
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Diferente no entanto de Jackson, para quem "é encarnado-preto-e-branco, é encarnado-e-preto", porque os fenômenos se definiam por oposição, de modo diferente o compositor Gilberto Gil compõe. Tem idas e vindas a sua fala, sem jamais chegar a uma definição que não admita nuances.
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Para ele não existe A ou B, para ele, sempre, as coisas são A e B ao mesmo tempo. Ele poderá dizer, por exemplo, que as coisas não existentes existem, e completar, para maior espanto, que o não existente é o que existe. Formulação ina-cei-tável em Jackson do Pandeiro.
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Essa maneira, dizendo melhor, esse conteúdo de expressão, porque nele a forma é sempre o conteúdo, leva-o a evitar os substantivos mais simples, como se fossem primitivos, toscos, poderia ser pensado. Mas não. Isso é tático, quando não estratégico. Ou ambos, para escrever à sua maneira.
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Vocês irão ver nesta entrevista como ele se refere a uma parcela do público brasileiro que admirava o Tropicalismo. Em nenhum momento ele dirá que eram jovens militantes da luta armada, foquistas. Ou melhor, dirá isso de outra maneira, por um método de aproximação. E no entanto, saibam, isso não é descoberta destes dias.
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Eu conheci jovens que aliavam sua prática de combate à ditadura a palavras do tropicalismo. Contrários ao mundo dos olhos claros, de Carolina e Januária na janela, do Chico Buarque daqueles anos, naquele tempo. E eram típicos, digamos assim, esses bravos militantes. Daí, também, que nessa busca Gilberto Gil crie neologismos, em mais de uma oportunidade. Ele está compondo, sempre. Como vocês verão, agora.
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Em 1969, você e Caetano foram expulsos do Brasil pela ditadura militar. Como é que você vê hoje, quando deu a volta por cima, primeiro com sua música, depois politicamente, porque é um ministro do governo. Que lembranças lhe dá o golpe de 64?

Das lembranças que a gente tem normais, do passado. Com as boas e más lembranças do passado. Com a recordação dos bons momentos e dos maus momentos, do que os bons momentos fizeram de mal à minha vida, do que os maus momentos fizeram de bem à minha vida ... (Risos) Tudo isso.. (E faz um gesto amplo, circular, com os braços.)
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Paulo Francis, de quem a gente nunca pode dizer que era um amor de pessoa, ele chegou uma vez no Pasquim...
Não, até que um amor de pessoa a gente pode dizer. A gente pode dizer que talvez ele não fosse uma pessoa do amor. (Risos) Que ele era amável, em tudo. Mas renitente com esse exercício irrestrito da amorabilidade. Ele tinha coisas das quais ele não queria mesmo gostar e não queria que aquelas coisas fossem aceitáveis, que eram pra ele inaceitáveis!...
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Ele chegou uma vez a te elogiar num artigo no Pasquim, quando escreveu mais ou menos assim, "o Gil poderia estar mais do que rico depois de Aquele Abraço, mas ele não é homem de repetir a fórmula que deu sucesso".
Eu nunca fiz música pra, pra...
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Tocar no rádio?
Não, pra estabelecer uma linha de montagem, ou estabelecer uma reprodução do mesmo modelo, pra explorar os filões de mercado, coisa desse tipo nunca foi preocupação minha. Eu gosto de fazer sucesso, eu gosto de vender disco também, tudo, mas não, por exemplo, eu gosto de fazer sucesso, mas não gosto de fazer os mesmos sucessos duas vezes, por exemplo. (Risos) Eu não gosto muito. (Risos.) Pedir pra fazer outro sucesso, depois outro sucesso, depois outro sucesso, o mesmo sucesso outra vez, eu não quero. (Risos)
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Você é um compositor que sem alarde, ou como se dizia naquela época, "sem dar bandeira", você é um compositor muito político. Pelo que eu lembro da juventude da época, na ditadura militar, eu lembro que o movimento tropicalista era relacionado a determinada linha de combate clandestino. Você faz essa relação? Por exemplo, tinha ala da esquerda que era do lado de Chico Buarque, tinha ala da esquerda que era do Tropicalismo, você vê isso?
Acho que sim. Acho que era. As pessoas associavam sua política, seu compromisso... (Tosse) a determinados campos, na própria política e no campo estético também. Então o Tropicalismo estava ligado às correntes mais ... mais audaciosas, mais, que predicavam uma ruptura maior, que predicavam uma ruptura de um convencionalismo estético, artístico, e etc., e também político, não é? Nós gostávamos das correntes políticas mais autônomas, mais abertas, menos subordinadas a linhas programáticas clássicas.
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Quando você diz que pegava uma linha política mais aberta, menos amarrada a programas tradicionais, eu lembro que a sua trajetória de diálogo com a esquerda nem sempre foi ausente de conflitos.
Foi tangencial sempre. (Riso) Eu nunca mergulhei em nenhuma corporação, em nenhuma unidade da política das esquerdas, porque eu sempre fui uma coisa que o Partido Comunista naquela época costumava classificar como "linha auxiliar". (Riso)
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Se você não fosse um homem negro, que artista você seria?
Eu não faço a menor idéia. (Risos.) Eu não faço a menor idéia. Eu não teria essa sestrosidade rítmica que eu tenho, isso é uma coisa que eminentemente muita gente tem, outras raças, outros contextos étnicos propiciam, mas a vivência negra, da cultura negra... e quando eu digo raça, digo nesse sentido, de mais no sentido da cultura, de ser negro culturalmente negro me dá uma relação com a música, com o ritmo, com o mundo religioso, com tudo enfim que eu não teria não sendo negro, e portanto não seria o artista que eu sou. Seria outro. Outra pessoa. (Riso e sorriso.)
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