domingo, 29 de julho de 2007

Che Guevara nas trilhas da revolução latino-americana por Augusto Buonicore*

Che em foto clássica tirada por Alberto Korda em 1960
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Artigo publicado originalmente no Vermelho.org.br
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“Outra vez sob meus calcanhares o lombo de Rocinante, retomo o caminho com meu escudo no braço (...) Muitos dirão que sou aventureiro, eu sou de fato, só que de um tipo diferente, daqueles que entregam a pele para demonstrar suas verdades”. Che Guevara - Trecho da carta endereçada aos seus pais, antes de partir para sua última trincheira na Bolívia
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Há 40 anos, no dia 9 de outubro, morria o comandante Che Guevara. Tombou no seu posto de combate pela libertação econômica, política e social da América Latina. Mas quem foi Che Guevara? Qual sua contribuição à causa socialista? Tentaremos, sem grandes pretensões, encontrar algumas dessas respostas neste e no próximo artigo.
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Nas décadas que se seguiram à sua trágica morte nas selvas bolivianas, Che foi perdendo sua substância e se transformando num ícone; na verdade, um dos maiores ícones da segunda metade do século 20. Seu rosto de guerrilheiro altivo foi estampado em camisetas, cartazes e pichações por todo o mundo. Se existe um lado positivo neste fenômeno, pois mantém viva a imagem de um dos maiores heróis latino-americanos; de outro, ele acaba acobertando as idéias e o projeto político pelo qual Guevara viveu e morreu: a libertação da América Latina do julgo imperialista, a conquista do socialismo e a construção do homem e da mulher novos.
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O sistema capitalista tem uma incrível capacidade de incorporar alguns elementos da cultura alternativa, até mesmo revolucionária, e transformá-los em objetos de mercado, formas sem conteúdo, neutras, inofensivas. No entanto, a personalidade forte de Che não pode ser presa, capturada, na camisa de força do ícone, da marca, do mito. Por isso, para compreender o verdadeiro Che, é preciso ir para além do ícone, além da marca, além do mito. Estes não têm sangue correndo nas veias, não são de carne e osso, não sentem fome ou frio. Eles não têm dúvidas ou medos, são fantasmas que não convivem com as malditas contradições cotidianas. Ao contrário dos ícones, os homens e mulheres de verdade, inclusive os mais revolucionários deles, padecem de todas essas vicissitudes humanas e Che foi, acima de tudo, um homem. Um homem do seu tempo.
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O homem e seu destino
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Ernesto Guevara de la Serna nasceu em 14 de junho de 1928 na Argentina. Filho de família de pequenos produtores rurais de erva-mate. Cresceu usufruindo a vida de um membro das classes médias sul-americanas. Mas, desde muito cedo, Ernesto sofreu com os seus problemas de saúde. Aos dois anos apareceu-lhe a asma, que o acompanhou, como um fantasma, durante toda sua vida, inclusive nos seus derradeiros dias nas selvas bolivianas.
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Ironicamente, aquele que seria considerado o mais temido comandante guerrilheiro latino-americano, foi declarado inapto para o serviço militar no seu próprio país. Guevara, então, matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires.
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A doença, no entanto, não enfraqueceu o seu espírito indomável; pelo contrário, ela o impulsionou a ultrapassar todos os limites. Com 23 anos comprou uma motocicleta e, ao lado de um amigo, percorreu diversos países da América Latina. Em 1953 se formou em medicina e partiu novamente em outra aventura para conhecer mais e melhor seu sofrido continente. Passou pela Bolívia e depois seguiu para a Guatemala, onde havia um governo democrático e popular, dirigido por Jacobo Arbenz. Este havia expropriado as terras da poderosa empresa norte-americana United Fruit. Nesta ocasião Guevara comprou alguns livros marxistas e passou a estudá-los com afinco.
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O jovem Guevara, que apoiava o governo, se alistou para trabalhar num programa de saúde entre a população indígena, mas foi obrigado a ficar num posto médico na capital guatemalteca. Em 18 de junho de 1954 o presidente Arbens foi derrubado do poder por mercenários apoiados pelos EUA. Guevara tentou organizar um grupo de jovens para resistir à invasão. Afirmaria mais tarde: “Na Guatemala era necessário lutar, porém quase ninguém lutou”.
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O jovem médico argentino, fichado como “perigoso comunista”, foi incluído nas temidas “listas negras” dos condenados à morte e obrigado a se refugiar no consulado argentino. O novo governo conservador, servilmente, devolveu as terras nacionalizadas à United Fruit, retirou os direitos trabalhistas dos camponeses pobres, prendeu, torturou e assassinou vários militantes de esquerda.
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Guevara extraiu deste trágico acontecimento as suas primeiras - e inesquecíveis - lições sobre a luta emancipacionista na América Latina. Ele concluiu que: 1º o imperialismo norte-americano era o principal inimigo dos povos; 2º a luta revolucionária seria o único meio para se conquistar um poder democrático, popular e socialista; 3º as burguesias nacionais já haviam esgotado o seu papel na luta revolucionária antiimperialista no continente.
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Guevara passou dois meses asilado no consulado argentino e, então, seguiu com outros refugiados para o México. Ali entrou em contato com elementos da oposição cubana, ligados ao movimento “26 de julho”, que o convidaram para participar dos planos para derrubada do ditador Fulgêncio Batista. Escreveu ele: “Falei com Fidel uma noite toda. E ao amanhecer já era o médico de sua futura expedição. Na realidade, depois de minhas caminhadas por toda América Latina e do arremate na Guatemala, não era necessário muito para incitar-me a entrar em qualquer revolução contra um tirano”. Amarrava-se assim o destino do jovem médico argentino com o da revolução cubana.
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Depois de um ano de preparativos, em novembro de 1956, 82 homens partiram para Cuba a bordo do Granma. Antes de chegar ao seu objetivo a expedição foi descoberta pelas forças armadas do ditador cubano e, após os duros combates, ficou reduzida a apenas 15 homens, que se refugiaram nas Sierra Maestra. Os poucos sobreviventes uniram-se aos camponeses pobres, que lhes serviram de base de apoio para o início da ação guerrilheira. Em pouco tempo Che assumiu o comando da 2ª coluna de guerrilheiros. No dia 1º de janeiro de 1959 as suas tropas conquistaram a cidade de Santa Clara e o ditador Batista fugiu de Cuba. Três dias depois os “barbudos” de Fidel entraram triunfantes em Havana e Guevara foi nomeado governador militar daquela província. A
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revolução vitoriosa foi profundamente popular, assentada nos camponeses e nos trabalhadores urbanos, e cumpriu todos os seus compromissos. O governo revolucionário expropriou os latifúndios, muito deles pertencentes a companhias norte-americanas. Quando as refinarias norte-americanas localizadas em Cuba se recusaram a refinar petróleo vindo da URSS, o governo cubano as nacionalizou. Em represália, Washington suspendeu a compra de açúcar, visando sufocar a economia da ilha. A cada pressão dos norte-americanos, o governo cubano radicalizava ainda mais as suas posições antiimperialistas. A revolução foi rapidamente mudando seu caráter, de nacional-democrática passou a ser socialista.
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Em abril de 1961 ocorreu a tentativa de invasão de Cuba por mercenários, pagos e apoiados pela CIA, na Bahia dos Porcos. As tropas invasoras foram destroçadas em poucas horas. Fidel rompeu definitivamente com os norte-americanos e se afirmou marxista-leninista.
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Ainda neste ano Che representou Cuba na reunião da Organização dos Estados Americanos, ocorrida no Uruguai, que foi convocada especialmente para condenar o novo regime cubano e excluí-lo da organização. Neste conclave Guevara denunciou firmemente os planos do imperialismo contra à ilha e defendeu o governo de Fidel da acusação de estar tentando exportar a revolução para a América Latina. Declarou ele: “Não podemos deixar de exportar exemplos, como querem os Estados Unidos, porque o exemplo é algo espiritual que ultrapassa as fronteiras. O que damos de garantia é que não exportaremos a revolução, damos a garantia de que não se moverá um fuzil de Cuba, que não se moverá uma só arma de Cuba, para luta em nenhum outro país da América”.
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Continuou: “O que não podemos assegurar é que as idéias de Cuba deixem de implantar-se em algum outro país da América. O que asseguramos a esta Conferência é que, se não se tomarem medidas urgentes de prevenção social, o exemplo cubano penetrará nos povos e, então, aquela exclamação (...) de Fidel em 26 de julho e que foi interpretada como uma agressão, se tornará uma realidade. Fidel disse que se mantiveram as atuais condições sociais ‘a cordilheira dos Andes será a Sierra Maestra da América’”.
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Na volta Guevara passou pelo Brasil e foi condecorado pelo presidente Jânio Quadros. Poucos dias depois, sob forte pressão da direita, o presidente brasileiro renunciaria, abrindo uma crise política e militar que conduziu o país a beira de uma guerra civil.
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Em outubro de 1962 aconteceu uma nova crise com os EUA. O governo norte-americano descobriu que Cuba possuía mísseis nucleares e passou a exigir que fossem imediatamente desmontados. Houve, então, uma nova ameaça de invasão e o mundo chegou bastante próximo de uma guerra nuclear. Os soviéticos recuaram e, unilateralmente, sem acordo com os cubanos, decidiram retirar os mísseis da ilha. Fidel e Guevara sentiram-se traídos pelos russos.
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Em 1961 Guevara foi indicado para Ministro da Indústria. Defendeu uma industrialização mais rápida e a centralização maior da economia. Por suas posições entrou em conflito com os soviéticos que defendiam uma Cuba não-industrial que se concentrasse na produção de açúcar – numa espécie de divisão internacional do trabalho “socialista”. Polemizou também em torno da predominância de incentivos materiais para o aumento da produtividade do trabalho e advogou a necessidade de uma emulação assentada fundamentalmente na ideologia socialista. Como ministro Guevara visitava as fábricas e canaviais e participava dos trabalhos manuais. Ele foi o principal incentivador do trabalho voluntário na produção, seguindo exemplo dos primeiros anos da revolução soviética. Os membros dos ministérios e das universidades, uma vez por semana, ajudavam no corte de cana ou exerciam outro tipo de trabalho, manual e produtivo. À frente deste esforço estava o ministro e presidente do Banco de Cuba, Ernesto Che Guevara.
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Guevara valorizava muito o aspecto ideológico também na construção do chamado “homem novo”, ou seja, de um novo humanismo socialista. Em “O que deve ser um jovem comunista”, escreveu ele: “o que se coloca para todo jovem comunista é ser essencialmente humano, ser tão humano que se aproxime do melhor dos humanos. Purificar o melhor do homem através do trabalho, do estudo, da prática da solidariedade contínua com o povo e com todos os povos do mundo; desenvolver o máximo de sensibilidade, até o ponto de sentir-se angustiado quando em algum canto do mundo um homem é assassinado e até o ponto de sentir-se entusiasmado quando em algum canto do mundo se levanta uma nova bandeira de liberdade”.
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Outras serras, outras trincheiras
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No entanto, Che não se adaptou bem na função de Ministro de Estado e acabou pedindo para ser substituído no cargo A partir de 1964 tornou-se uma espécie de relações exteriores da revolução cubana, viajando para vários países da América Latina, África e Ásia. Em 1965, misteriosamente, desapareceu da vida pública e renunciou à todas suas responsabilidade junto ao governo e a direção do Partido Comunista Cubano. Isto era necessário tendo em vista o novo projeto revolucionário que ele iria se envolver.
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Na sua carta de despedida à Fidel escreveu: “Outras serras do mundo requerem meus modestos esforços. Eu posso fazer aquilo que lhe é vedado devido à sua responsabilidade à frente de Cuba, e chegou a hora de nos separarmos (...) Declaro uma vez mais que eximo Cuba de qualquer responsabilidade, a não ser aquela que provém do seu exemplo. Se minha hora final me encontrar debaixo de outros céus, meu último pensamento será para o povo e especialmente para ti, que te digo obrigado pelos teus ensinamentos e pelo teu exemplo, ao que tentarei ser fiel até às últimas conseqüências dos meus atos; que estive sempre identificado com a política externa da nossa revolução, e continuo a estar; que onde quer que me detenha sentirei a responsabilidade de ser revolucionário cubano, e como tal atuarei. Não lamento por nada deixar nada material para minha mulher e meus filhos. Estou feliz que seja assim. Nada peço para eles, pois o Estado os proverá com o suficiente para viver e para ter instrução”. Esta carta é um veemente desmentido aos boatos que correram o mundo – e foram usadas pelos inimigos da revolução cubana - sobre um possível rompimento de relações entre os dois revolucionários cubanos.
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Depois de participar de uma frustada tentativa revolucionária no Congo, ele partiu secretamente para a Bolívia. Este país foi escolhido por sua localização central, que, acreditava, permitiria estender o movimento guerrilheiro por todo continente latino-americano. Em março de 1967 o pequeno grupo guerrilheiro comandado por Che foi descoberta pelos órgãos de repressão. Num primeiro momento ele obteve algumas vitórias sobre o desorganizado exército boliviano, mas logo entraram em ação os “rangers”, treinados pelos norte-americanos no Panamá, com o apoio de “técnico” da CIA.
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A experiência da guerrilha boliviana revelou os equívocos de muitas das concepções político-militares defendidas pelo revolucionário cubano, entre elas: a afirmação de que já existiriam as condições objetivas para eclosão de uma revolução socialista em toda América Latina, cabendo apenas a ação enérgica de um pequeno grupo de revolucionários para que se constituíssem as condições subjetivas.
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No início de outubro eram apenas 17 os guerrilheiros que permaneciam vivos ao lado de Che – um número maior do que o que se alojou na Sierra Maestra em 1956 -, mas as condições eram-lhes completamente adversas. A guerrilha atuou numa zona hostil, em condições bastante diferentes das existentes na serras cubanas. Os camponeses compunham uma massa ainda atrasada e que não tinha a tradição revolucionária dos camponeses cubanos. A principal força social de esquerda na Bolívia, os mineiros, havia sido esmagada pelo governo em junho de 1967. Esta era uma prova de que as revoluções não podem ser copiadas.
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Nos seus últimos dias, Guevara escreveu: “Dia de angustia que em certo momento pareceu ser o nosso último dia (...) o exército está mostrando maior efetividade de ação, e a massa camponesa não nos ajuda em nada e se converte em delatores”. Estes eram claros sinais que uma tragédia estava prestes a ocorrer. A situação exigia recuo, mas já era tarde demais.
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No dia 8 de outubro de 1967 o pequeno grupo foi cercado e massacrado. Che acabou sendo ferido em combate e preso. No dia seguinte foi executado ilegalmente por ordens do governo do general Barrientos, que temia que um julgamento público pudesse se transformar num palanque para as idéias revolucionárias de Che. O corpo do comandante guerrilheiro foi enterrado clandestinamente e por mais de 30 anos o local permaneceu desconhecido.
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Sobre o trágico desaparecimento de Che e as esperanças que ele semeou, cantou o poeta e compositor cubano Pablo Milanés: “Não porque caístes/ Tua luz é menos alta./ Um cavalo de fogo/ Sustenta a tua escultura guerrilheira/ Entre o vento e as nuvens destas serras./ Não porque foi calado és silêncio/ E não porque te queimaram,/ Porque te dissimularam sobre a terra,/ Porque te esconderam/ Em cemitérios, bosques e pântanos/ Vão impedir que te encontremos./ Che comandante, amigo”.
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Veja Guevara no youtube:
Fidel lê a carta de despedida de Chehttp://www.youtube.com/watch?v=kQoXQYBBjnc&mode=related&search=
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Fidel fala da morte de Che em 1967http://www.youtube.com/watch?v=huvrR8FCJpU
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Discurso em Santa Clara em 1961 – “Por que é a natureza do imperialismo que bestializa os homens”http://www.youtube.com/watch?v=OfMvvGw4lIs&mode=related&search=
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Belo discurso na ONU em 1964http://www.youtube.com/watch?v=DO7yxx7Y81w&mode=related&search
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Belo vídeo-clipe sobre Guevarahttp://www.youtube.com/watch?v=O_QXOG1rDLs&mode=related&search
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Bibliografia
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Aquino, Rubim (e outros) História das Sociedades Americanas, Ed. Eu e você, RJ, 1981Bandeira, Luiz Alberto Moniz – De Martí a Fidel, Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1998.Che Guevara, Coleção Grandes Cientistas sociais (organizado por Eder Sader), Ed. Àtica, SP, 1988. Harnecker, Marta – Fidel, a estratégia política da vitória, Ed. Expressão Popular, SP, 2000
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*Augusto Buonicore, Historiador, mestre em ciência política pela Unicamp
* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do site.

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